terça-feira, 14 de abril de 2009

O SALVADOR ENVIADO


Como Deus é bom! Do meu coração brotam essas palavras no momento em que me coloco numa atitude de reflexão a respeito de Cristo, do Seu Projeto de amor e da sua atitude salvífica em relação a nós. A misericórdia do Senhor é imensa e apoiando-nos nela, teremos condições de enfrentar as adversidades da vida e as amarguras do dia-a-dia. A revelação dessa misericórdia é feita por Jesus Cristo, aquele que Deus Pai enviou ao mundo para salvar a todos[1]. As atitudes e palavras de Jesus mostram um rosto amoroso de Deus, o qual não leva em conta nossas faltas e fragilidades humanas mas, se inclina sobre nossas misérias para nos acolher e curar. Cristo é a imagem do Deus Amor[2], mirando-nos no Seu exemplo de doação, encontramos a nossa mais sublime vocação, a saber, ser amor-doação para as pessoas que cruzam nossos caminhos.
Cristo assume o nosso sofrimento e, com sua Encarnação, Morte e Ressurreição, dignifica o ser humano restaurando a vida que estava ferida pelo pecado. Somente olhando para Ele, a humanidade redescobre o caminho para a Casa do Pai onde há a possibilidade de vida, gozo e paz.
No Antigo Testamento encontramos um tipo muito explicativo para a ação salvífica de Jesus. É a história de José do Egito (Gêneses 37,3-28).
Nesta meditação, destacaremos algumas afirmações advindas do próprio texto para nosso aprofundamento.

a) Israel amava mais a José do que a todos os outros filhos e lhe mandou fazer uma túnica de mangas longas.[3]

Com nossos padrões morais vigentes não conseguimos entender a atitude de Israel. Como pode ser um pai amar um filho mais do que a outros? Para nossa cultura ocidental isso é inadmissível mas, no contexto da Revelação bíblica é plenamente possível. Os povos orientais e ocidentais, por muito tempo, mantinham tradições que davam plenos poderes ao filho mais velho quando da falta do pai. Era o direito da primogenitura, muito presente nas culturas antigas. Além disso, o pai poderia – como ainda hoje, pode – preferir um filho e deixar seus bens para este. É o que acontece, por exemplo, nos testamentos que são feitos em vida. Fica claro que a sociedade aceitava o fato de um pai eleger um dos filhos para ser receptáculo do seu amor de predileção.
Só entende o amor de predileção quem aprofunda o significado do amor.
Temos uma mentalidade social que nega aos pais a capacidade de escolher um filho em relação aos outros, mas, esse não é o dado bíblico para o amor familiar. Amar alguém com esse tipo de afeição, elegendo, colocando o outro acima dos demais, não significa amar menos os outros. O amor é sempre amor, quando é verdadeiro. A predileção não está ligada à intensidade do amor. Você ama o predileto com o mesmo amor com que se dirige aos demais. Isso é o que aprendemos com Deus Pai.
Deus Pai faz escolhas. E suas escolhas são fruto do Seu amor único, eterno e total por toda a Criação. Deus ama a todos de forma pessoal, única e infinita. Ele não pode amar um mais do que outro, mas, justamente por amar assim, Deus Pai faz escolhas, e elege alguns, escolhe alguns como prediletos. Abraão, Moisés, Davi e Maria são bons exemplos neste momento. Mas, é em Jesus, que percebemos a força desta verdade. Dele, o Pai diz: "E do céu baixou uma voz: Eis meu Filho muito amado em quem ponho minha afeição".[4]
Entende a idéia de predileção quem tem um amigo. Alguém já disse que amigo é um irmão que você escolhe. Na verdade, quando vivemos um amor fraterno com alguém, não significa que amemos apenas esse alguém, no entanto, nossa atenção se dirige de forma especial para este indivíduo escolhido, pelo simples fato de que, ele é importante para nossa caminhada e crescimento humano.
Quando Deus Pai escolhe, é em vista da Salvação de todos. Ele ama a todos por igual, mas em seu amor de predileção, elege algumas almas para serem almas-doadas pela salvação de todos.
Jesus é muito mais que predileto. Ele é Deus com o Pai e o Espírito. O Coração do Pai é inclinado para o Filho e o coração do Filho é inclinado para o Pai.

b) ... e por isso mandou fazer uma túnica de mangas longas.[5]

A túnica, na Bíblia, é sempre sinal de dignidade. “No tempo de José as mangas longas de uma túnica indicavam a importância da pessoa. A túnica de José, que segundo estudiosos era com as mangas longas, indicava que ele não seria um trabalhador comum, na sua família, como os seus irmãos, mas estaria acima deles, trabalhando como um gerente. Este era desejo de seu pai e, por isso, Jacó quis que todos logo soubessem como deveriam tratar José.”[6]
Este menino tem dignidade. Mais uma vez o tema da predileção. Jacó coloca José àcima dos demais. É uma escolha proveniente do amor. Não de um amor exclusivo e excludente mas, um amor de predileção e eleição. Aqui está outro arquétipo de Cristo. Ele é o escolhido de Deus, colocado àcima de todos, o Senhor. "E novamente, ao introduzir o seu Primogênito na terra, diz: Todos os anjos de Deus o adorem (Sl 96,7)".[7]

c) “Assim que José chegou perto dos irmãos, estes despojaram-no da túnica de mangas longas, pegaram nele e lançaram-no numa cisterna que não tinha água. Depois sentaram-se para comer”.[8]

Não tem como fugir da analogia deste trecho com a Paixão de Cristo. Aqui encontramos um resumo de tudo o que Jesus sofreu.
Vejamos a alusão:
“...despojaram-no da túnica de mangas longas”. Imeditamente, vêm-nos à mente a cena do despojamento de Cristo no Calvário. "Arrancaram-lhe as vestes e colocaram-lhe um manto escarlate".[9] Mas, não devemos parar por aqui. Existem outras realidades que precisam ser contempladas. Em primeiro lugar, contemplemos toda humilhação que o Cristo passou no Calvário. Tal qual José do Egito, o Filho do Homem foi entregue às mãos dos pecadores[10], Eles O pegaram, colocaram-lhe um coroa de espinhos sobre a Sua cabeça e zombaram dele. "Depois, trançaram uma coroa de espinhos, meteram-lha na cabeça e puseram-lhe na mão uma vara. Dobrando os joelhos diante dele, diziam com escárnio: Salve, rei dos judeus!"[11]Do alto da Cruz, Jesus ouve os escárnios: "Tu, que destróis o templo e o reconstróis em três dias, salva-te a ti mesmo! Se és o Filho de Deus, desce da cruz!"[12] É interessante que a mesma fórmula “se és o Filho de Deus” é usada por Satanás na tentação do deserto[13]. Por isso, o evangelista diz que, o Demônio se afastou de Jesus até o momento oportuno[14]. Jesus é despojado de sua honra. Recebe a dor, o sofrimento e a humilhação.
Existe, porém, outra verdade que gostaria de refletir. O Filho do Homem é despojado de outra maneira. Isso acontece na Kénosis, no rebaixamento voluntário do Filho de Deus, conforme nos diz São Paulo. "mas aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e assemelhando-se aos homens".[15]

“...pegaram nele”.

José do Egito foi raptado à força. Jesus, o Filho do Homem, se entrega voluntariamente. "Ninguém a tira de mim [a vida], mas eu a dou de mim mesmo e tenho o poder de a dar, como tenho o poder de a reassumir. Tal é a ordem que recebi de meu Pai".[16]
Por causa do amor do Pai e de nós homens, e para nossa salvação, Ele desceu dos céus e se entregou voluntariamente por cada um de nós. O Catecismo da Igreja nos diz que a validade do Sacrifício de Cristo é o Seu amor por Deus e pelos homens. “Com efeito, aceitou livremente sua Paixão e Sua Morte por amor de seu Pai e dos homens, que este quer salvar: ‘Ninguém me tira a vida, mas eu a dou livremente’ (João 10,18). Daí a liberdade soberana do Filho de Deus quando Ele mesmo vai ao encontro da morte”.[17]
Jesus se entrega por nós. Como Cordeiro mudo, Ele se oferece. "A passagem da Escritura, que ia lendo, era esta: Como ovelha, foi levado ao matadouro; e como cordeiro mudo diante do que o tosquia, ele não abriu a sua boca".[18]
E Jesus carregava a Sua Cruz. "Levaram então consigo Jesus. Ele próprio carregava a sua cruz para fora da cidade, em direção ao lugar chamado Calvário, em hebraico Gólgota".[19]


“... e lançaram-no numa cisterna que não tinha água”.
No último instante da vida de Jesus, Ele sente sede e não havia água. "Em seguida, sabendo Jesus que tudo estava consumado, para se cumprir plenamente a Escritura, disse: Tenho sede".[20] O Criador de tudo precisa da água, criatura sua, para conseguir ir até o final. Ele não poderia morrer antes de cumprir toda a Escritura. Ele é o pleno cumprimento da Lei, O Amém, a Testemunha Fiel[21]. Muitas vezes eu e você, diante de alguns problemas, nos prostramos e entregamos os pontos. Jesus precisa encontrar forças para ir até o final. Ele não pode morrer antes do tempo, antes de ter feito tudo o que era do projeto do Pai. E ele pede água. Então "deram-lhe de beber vinho misturado com fel. Ele provou, mas se recusou a beber".[22]
A água é sinônimo de vida. No início de tudo, o Espírito de Deus paira sobre as águas.[23] Agora, no limiar da Nova e Eterna Aliança, Jesus, o Verbo de Deus, prometer fazer jorrar água viva do interior dos crentes. "Quem crê em mim, como diz a Escritura: Do seu interior manarão rios de água viva (Zc 14,8; Is 58,11)".[24]
Se a cisterna onde José fora jogado não havia água, agora, a água está no lado aberto de Jesus, de onde brotam os Sacramentos - verdadeiros mananciais da Graça de Deus - e a Igreja, Sua Esposa Imaculada. "mas um dos soldados abriu-lhe o lado com uma lança e, imediatamente, saiu sangue e água".[25]

“Depois sentaram-se para comer.”

Quando crucificaram Jesus, os soldados "dividiram as suas vestes e as sortearam".[26] Eles não se deram conta do que estava acontecendo. Mas um Centurião percebe toda a verdade: "O centurião e seus homens que montavam guarda a Jesus, diante do estremecimento da terra e de tudo o que se passava, disseram entre si, possuídos de grande temor: Verdadeiramente, este homem era Filho de Deus!"[27]
Diante da realidade de pecado e de morte em que a sociedade vive, nossa consciência vai ficando relaxada de tal sorte, que não conseguimos mais, perceber nossas ações desagradáveis a Deus e o Seu poder agindo entre nós. Passamos diante da Cruz do Senhor e nosso coração não estremece mais por causa de nossas ofensas. Fingimos que não é conosco, quando o Senhor derrama todo o Seu Sangue pela nossa Salvação. São Francisco de Assis, refletindo sobre isso, dizia: “Os demônios, então, não foram eles que o crucificaram; és tu que com eles o crucificaste e continuas a crucificá-lo, deleitando-te nos vícios e nos pecados”[28]

d) “Ao passarem os comerciantes madianitas, tiraram José da cisterna e, por vinte moedas de prata, o venderam aos ismaelitas; e estes o levaram para o Egito”.[29]

"Assim se cumpriu a profecia do profeta Jeremias: Eles receberam trinta moedas de prata, preço daquele cujo valor foi estimado pelos filhos de Israel."[30]É desta maneira que o Evangelista Mateus descreve o preço de Jesus. Ele fora vendido a preço de escravo. Tanto as vinte moedas de prata que é o preço de José do Egito quanto as trinta moedas de prata que é o preço de Jesus têm o mesmo significado. Ambos eram preços de escravo. Os dois foram tratados como escravos pelos seus irmãos e se tornaram causa de salvação para eles.
José vai como escravo para o Egito e lá, se torna mão providente do Senhor Deus para preparar a salvação do Povo da Aliança. Jesus, sendo Deus, se humilhou e se fez escravo[31] para salvar toda a humanidade. Ele mesmo disse que, somente pela humildade, conseguimos alcançar as coisas [32]. Ele é o Servo de Javé: "Após suportar em sua pessoa os tormentos, alegrar-se-á de conhecê-lo até o enlevo. O Justo, meu Servo, justificará muitos homens, e tomará sobre si suas iniqüidades".[33]
Jesus é o estrangeiro que vem para a nossa Salvação. Ele é o servo enviado por Deus para cumprir a Sua Palavra. [34]


e) “Disseram entre si: ‘Aí vem o sonhador! Vamos matá-lo e lançá-lo numa cisterna, depois diremos que um animal feroz o devorou. Assim veremos de que lhe servem os sonhos’”.[35]

No Evangelho de Mateus[36] encontramos um texto muito significativo para ilustrar a nossa reflexão. Jesus conta a história dos vinhateiros homicidas. Jesus é o Filho do dono da vinha. Os vinhateiros, ambicionando ficar com tudo para si, lançam mão sobre Jesus, jogam-no para fora e o matam. Estes vinhateiros somos nós. Cada um de nós é responsável pela morte de Cristo. Com nossas maquinações e pecados, vamos expulsando Jesus da vinha do Pai, isto é, vamos usurpando a Cristo o direito que Ele possui sobre a Terra e sobre nossas vidas, porém, o Evangelho traz um dado significativo, embora nós, os homens pecadores, tramemos contra Cristo, Ele, por desígnio de Deus Pai, tal qual José do Egito que se tornou chefe daquele país, recebe todo poder e autoridade[37] e se torna a pedra angular. Ele é o Princípio e o Fim de todas as Coisas. "Ele é a Cabeça do corpo, da Igreja. Ele é o Princípio, o primogênito dentre os mortos e por isso tem o primeiro lugar em todas as coisas".[38] A Ele toda glória, pelos séculos dos séculos, Amém!


[1] Cf João 3,16
[2] Cf. Colossenses 1,15
[3] Gn 37,3
[4] Mateus 3,17
[5] Gn 37,3b
[6] www.miba.org.br
[7] Hebreus 1,6
[8] Gn 37,23-25a
[9] Mateus 27,28
[10] Cf. Mateus 26,45
[11] Mateus 27,29
[12] Mateus 27,40
[13] Cf. Lucas 4,1-13
[14] Cf. Lucas 4,13
[15] Filipenses 2,7
[16] João 10,18
[17] Catecismo da Igreja Católica n. 609
[18] Atos 8,32
[19] João 19,17
[20] João 19,28
[21] Cf. Apocalipse 3,14
[22] Mateus 17,34
[23] Cf. Gêneses 1,2
[24] João 7,38
[25] João 19,34
[26] Lucas 23,34
[27] Mateus 27,54
[28] Admon. 5,3
[29] Gêneses 37,28
[30] Mateus 27,29
[31] Cf. Filipenses 2,5ss
[32] Cf. Marcos 9,35
[33] Isaías 53,11
[34] Cf. Salmo 104
[35] Gêneses 37,19-20
[36] Mateus 21,33-43.45-46
[37] Cf. Mateus 28,18
[38] Colossenses 1,18